
Educação para mudar a realidade feminina
Mulheres relatam caminhos árduos para conquistar espaço no mercado. Projeto tenta amenizar essa trajetória
Marta Cezaria, do Dandara do Cerrado, batalha pelo acesso de mulheres negras e pobres à educação superior (Foto: Zuhair Mohamad / O Popular)
Ela é uma das mulheres negras mais influentes de Goiás. Quando nasceu há 62 anos numa fazenda no Sudoeste goiano, os pais eram meeiros do patrão. Na infância muito pobre foi babá aos 6 anos em troca de roupa e comida. Depois buscou nos estudos o sustentáculo para se converter numa agente de transformação social. Desde os anos 80 Marta Cezaria de Oliveira, bióloga por formação, inscreve seu nome em movimentos que combatem o preconceito, a discriminação e, sobretudo que fortalecem a luta de mulheres que querem e sabem que podem fazer diferença na sociedade.
À frente do Grupo de Mulheres Negras Dandara do Cerrado, organização não-governamental que criou em 2002, Marta Cezaria não mede esforços para desenvolver ações educativas que estimulem o empoderamento econômico e político da população negra, além de fortalecer sua identidade. No ano passado a ONG deu início numa escola pública do Conjunto Vera Cruz, Região Oeste da capital, o projeto Investiga Menina!, que visa incentivar jovens pobres da periferia a ingressar nas carreiras de exatas e de tecnologia.
Este ano o Investiga Menina! foi um dos dez projetos selecionados pelo edital Elas nas Exatas, do Instituto Unibanco, Fundo Elas e Fundação Carlos Chagas, com o apoio da ONU Mulheres. No dia 19, Marta e outras duas representantes do Dandara do Cerrado, estarão no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, participando do 1º Seminário Elas nas Exatas, onde será debatida a equidade de gênero na educação pública e o enfrentamento das desigualdades.
“É um trabalho que a gente faz com amor. É lindo trabalhar a química dos cabelos, dos alimentos. Fazemos isso para que essas estudantes cheguem na universidade sem medo de exatas”, reforça Marta Cezaria. O Investiga Menina! nasceu por incentivo da coordenadora do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI) do Instituto de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG), Anna Maria Canabarro Benite, também integrante do Dandara do Cerrado. No ano passado, alguns de seus alunos foram essenciais no trabalho, mas com o reconhecimento nacional cresce a possibilidade de trazer cientistas renomadas para expor suas experiências aos alunos de escolas públicas.
Recém-formada em Química, Morgana Abranches, 24 anos, integra o projeto Investiga Menina! e não esconde o entusiasmo. “Muitas vezes elas não sabem da existência de cursos como esses. É muito bacana o resultado. Tenho certeza de que algumas delas estão se preparando para vir para esta área”, aposta. Com planos de entrar no mestrado, Morgana pretende continuar contribuindo com o Investiga Menina! em 2018. Marta Cezaria ressalta que o grande desafio para quem quer exatas, como Engenharia, é a questão do custo. “Temos que incentivá-las a ir para uma universidade federal”.
Fiel ao foco do Dandara do Cerrado - gênero e raça -, Marta Cezaria batalha pelo acesso de de mulheres negras e pobres na educação superior. A escolha do Colégio Estadual Solon Amaral, no Conjunto Vera Cruz 2, para desenvolver o projeto não é por acaso, já que é na periferia que elas se concentram. Quinzenalmente são realizados encontros com estudantes quando são expostas não apenas ideias, mas também experimentos práticos. O projeto expande para a sede do Dandara do Cerrado, no Jardim América, com eventos de formação.
Jovem fugiu de casa para estudar
Longe dos movimentos sociais, Iris Rosethe Moraes Silva, de 27 anos, é um exemplo de como a trajetória de uma mulher negra e pobre rumo à profissionalização e ao reconhecimento é árdua. Maranhense de Bacabal e filha de um casamento desfeito ainda criança, foi entregue aos cuidados da avó materna depois do abandono da mãe, usuária de drogas. A mulher que a gerou reapareceu quando ela tinha 10 anos e, sem nenhuma afinidade, Iris e a irmã se mudaram com ela para São Luis, a capital, onde ficou dos 12 aos 17 anos. “Foi um período de inferno em minha vida, com palavras negativas e espancamentos”.
De volta à casa da avó, Iris queria ser e fazer diferente. “Ninguém da minha família tinha curso superior. Não queria aquilo para mim. Queria transformar minha vida”, diz. Sem o apoio da avó, Iris fugiu de casa e veio para Goiânia num ônibus clandestino. A única referência era a irmã da melhor amiga que a acolheu numa casa na Vila Redenção onde 13 pessoas disputavam espaço. A primeira chance de emprego foi numa rede de sanduíches onde trabalharia na limpeza das 23 horas às 7 horas.
No dia da entrevista, saiu de casa às 22 horas com um único tiquete de transporte coletivo e desceu na Avenida Goiás, no Centro. “Comecei a andar por ruas desertas. Não sabia onde estava”. Iris foi abordada por uma boa alma. Depois de ouvir seu relato, um taxista a colocou no carro, deu-lhe um sitpass e a deixou no ponto de ônibus que a levaria para a empresa onde conseguiu ficar apenas 15 dias. “Eu nunca consegui encontrá-lo para agradecer o que fez por mim”.
Por causa da amiga que a acolheu, Iris se cadastrou para uma vaga de auxiliar de conservação no Flamboyant Shopping Center. Aprovada em fevereiro de 2010, em agosto já cursava Administração na Faculdade Sul Americana (Fasam). “Eu mesma paguei o curso, não tive bolsa de estudo. Meu salário era todo para a faculdade. Sobrevivia com o tiquete alimentação”. Iris conta que o trabalho a impediu de assistir muitas aulas. “Minha história tem muitos dias de choro e muito preconceito, mas eu só pensava que queria me preparar para o mercado”.
Em novembro de 2010, Iris galgou degraus no trabalho e em julho do ano seguinte já era a encarregada da área de conservação do mall. Mas ela queria mais. “Na época poderia ter investido num veículo próprio, mas optei pela pós-graduação em Gestão de Pessoas e Coaching”. O esforço foi reconhecido. Hoje, oito anos depois de aportar numa cidade desconhecida, é a responsável pela coordenação e gestão da área de conservação do Flamboyant, cargo em que controla 160 pessoas, entre elas a amiga que a recebeu.
“Eu sabia que meu comportamento faria diferença, principalmente não me vitimizar, mas a luta é muito grande”. Iris hoje tem seu próprio carro, ganhou um prêmio no trabalho que a levou para os Estados Unidos e paga aluguel de um apartamento onde pode receber duas amigas, uma delas negra, pobre e de Bacabal. “Uma pessoa não pode falar que quer estudar que meu coração amolece”. Em fevereiro, Iris foi convidada a falar de sua trajetória no Encontro de Egressos de Administração da Fasam.